segunda-feira, 31 de agosto de 2015

30. Cantar alentejano (José Afonso)



Cantar alentejano


Chamava-se Catarina
O Alentejo a viu nascer
Serranas viram-na em vida
Baleizão a viu morrer

Ceifeiras na manhã fria
Flores na campa lhe vão pôr
Ficou vermelha a campina
Do sangue que então brotou

Acalma o furor campina
Que o teu pranto não findou
Quem viu morrer Catarina
Não perdoa a quem matou

Aquela pomba tão branca
Todos a querem p´ra si
Ó Alentejo queimado
Ninguém se lembra de ti

Aquela andorinha negra
Bate as asas p´ra voar
Ó Alentejo esquecido
Inda um dia hás-de cantar        

José Afonso,1971.

Homenagem a Catarina Eufémia.

domingo, 30 de agosto de 2015

29. O poema pouco original do medo (Alexandre O'Neill)

Poema pouco original do medo


O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis

Vai ter olhos onde ninguém os veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no tecto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos

O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
             (assim assim)
escriturários
              (muitos)
intelectuais
              (o que se sabe)
com certeza a deles
a tua voz talvez
talvez a minha

Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados

Ah o medo vai ter tudo
tudo

(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo             .
que é justamente
o que o medo quer)
          
                   
        O medo vai ter tudo
        quase tudo
        e cada um por seu caminho
        havemos todos de chegar
        quase todos
        a ratos

        Sim
        a ratos
             
Alexandre O’Neill, Abandono Vigiado, 1960

sábado, 29 de agosto de 2015

28. Grândola, Vila Morena (José Afonso)



Grândola, Vila Morena


Grândola, vila morena
Terra da fraternidade
O povo é quem mais ordena
Dentro de ti, ó cidade

Dentro de ti, ó cidade
O povo é quem mais ordena
Terra da fraternidade
Grândola, vila morena

Em cada esquina, um amigo
Em cada rosto, igualdade
Grândola, vila morena
Terra da fraternidade

Terra da fraternidade
Grândola, vila morena
Em cada rosto, igualdade
O povo é quem mais ordena

À sombra duma azinheira
Que já não sabia a idade
Jurei ter por companheira
Grândola, a tua vontade

Grândola a tua vontade
Jurei ter por companheira
À sombra duma azinheira
Que já não sabia a idade

José Afonso, 1971



sexta-feira, 28 de agosto de 2015

27. Notícia para colar na parede (Egito Gonçalves)

Notícia para colar na parede


Por aqui andamos a morder as palavras
dia a dia no tédio dos cafés
por aqui andaremos até quando
a fabricar tempestades particulares
a escrever poemas com as unhas à mostra
e uma faca de gelo nas espáduas
por aqui continuamos ácidos cortantes
a rugir quotidianamente
até ao limite da respiração
enquanto os corações se vão enchendo de areia
lentamente
lentamente.
             
Egito Gonçalves, Notícias do Bloqueio, n.º 3, p. 61
Poemas Políticos (1952-1979)
Lisboa, Moraes Editores, 1980, pág. 53.

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

26. Que força é essa? (Sérgio Godinho)




Que força é essa?

Vi-te a trabalhar o dia inteiro
construir as cidades prós outros
carregar pedras, desperdiçar
muita força pra pouco dinheiro
Vi-te a trabalhar o dia inteiro
Muita força pra pouco dinheiro

Que força é essa
que força é essa
que trazes nos braços
que só te serve para obedecer
que só te manda obedecer
Que força é essa, amigo
que força é essa, amigo
que te põe de bem com outros
e de mal contigo
Que força é essa, amigo
Que força é essa, amigo
Que força é essa, amigo

Não me digas que não me compr´endes
quando os dias se tornam azedos
não me digas que nunca sentiste
uma força a crescer-te nos dedos
e uma raiva a nascer-te nos dentes
Não me digas que não me compr´endes

(Que força...)

(Vi-te a trabalhar...)

Que força é essa
que força é essa
que trazes nos braços
que só te serve para obedecer
que só te manda obedecer
Que força é essa, amigo
que força é essa, amigo
que te põe de bem com outros
e de mal contigo
Que força é essa, amigo
Que força é essa, amigo
Que força é essa, amigo
Que força é essa, amigo

Sérgio Godinho, 1971.

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

25. Profecia (Sidónio Muralha)

Profecia


Cada gesto de ódio
cada gesto de prepotência
cada gesto para amordaçar a verdade
cada gesto para amparar a mentira
cada gesto que suprime outro gesto
cada gesto – indigesto

‑ voltará implacável como um «boomerang»
e ninguém escapará a essa lei.
         
             
Sidónio Muralha, “Passagem de Nível” (1942)
in Obras Completas do Poeta. Lisboa, Universitária Editora, 2002

terça-feira, 25 de agosto de 2015

24. Traz outro amigo também (José Afonso)




Amigo maior que o pensamento
Por essa estrada amigo vem
Por essa estrada amigo vem
Não percas tempo que o vento
É meu amigo também
Não percas tempo que o vento
É meu amigo também

Em terras
Em todas as fronteiras
Seja benvindo quem vier por bem
Se alguém houver que não queira
Trá-lo contigo também

Aqueles
Aqueles que ficaram
(Em toda a parte todo o mundo tem)
Em sonhos me visitaram
Traz outro amigo também

José Afonso, 1970.

Versão Mayra Andrade
Versão Resistência
Versão Entre Aspas
Versão Vitorino

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

23. Este é o tempo (Sophia de Mello Breyner Andresen)

Este é o tempo
Da selva mais obscura
Até o ar azul se tornou grades
E a luz do sol se tornou impura
Esta é a noite
Deusa de chacais
Pesada de amargura
Este é o tempo em que os homens renunciam.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Mar Novo (1958)

domingo, 23 de agosto de 2015

22. Canto Moço (José Afonso)




Canto Moço

Somos filhos da madrugada
Pelas praias do mar nos vamos
À procura de quem nos traga
Verde oliva de flor no ramo.
Navegamos de vaga em vaga,
Não soubemos de dor nem mágoa.
Pelas praias do mar nos vamos
À procura da manhã clara.

Lá do cimo duma montanha
Acendemos uma fogueira
Para não se apagar a chama
Que dá vida na noite inteira,
Mensageira, pomba chamada
Companheira da madrugada.
Quando a noite vier que venha,
Lá do cimo duma montanha.

Onde o vento cortou amarras,
Largaremos pela noite fora
Onde há sempre uma boa estrela,
Noite e dia ao romper da aurora.
Vira a proa, minha galera,
Que a vitória já não espera.
Fresca brisa, moira encantada
Vira a proa da minha barca.

José Afonso (1970)

Versão Cristina Branco
Versão Ritual Tejo


sábado, 22 de agosto de 2015

21. Um Adeus Português (Alexandre O'Neill)

Um Adeus Português

Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz de ombros puros e a sombra
de uma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta cama comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal

Não tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal
*
Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.
         
Alexandre O’Neill, No Reino da Dinamarca, 1958

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

20. Desfolhada (Poema: José Carlos Ary dos Santos; Música: Nuno Nazareth Fernandes; Voz: Simone de Oliveira)



Poema (Letra): José Carlos Ary dos Santos;
Música: Nuno Nazareth Fernandes;
Voz: Simone de Oliveira.
1969

Desfolhada


Corpo de linho
lábios de mosto
meu corpo lindo
meu fogo posto.

Eira de milho
luar de Agosto
quem faz um filho
fá-lo por gosto.

É milho-rei
milho vermelho
cravo de carne
bago de amor
filho de um rei
que sendo velho
volta a nascer
quando há calor.

Minha palavra dita à luz do sol nascente
meu madrigal de madrugada
amor amor amor amor amor presente
em cada espiga desfolhada.

Minha raiz de pinho verde
meu céu azul tocando a serra
oh minha água e minha sede
oh mar ao sul da minha terra.

É trigo loiro
é além tejo
o meu país
neste momento
o sol o queima
o vento o beija
seara louca em movimento.

Minha palavra dita à luz do sol nascente
meu madrigal de madrugada
amor amor amor amor amor presente
em cada espiga desfolhada.

Olhos de amêndoa
cisterna escura
onde se alpendra
a desventura.

Moira escondida
moira encantada
lenda perdida
lenda encontrada.

Oh minha terra
minha aventura
casca de noz
desamparada.

Oh minha terra
minha lonjura
por mim perdida
por mim achada.

José Carlos Ary dos Santos, 1968.

Santos, Ary, in As Palavras das Cantigas (organização, coordenação e notas de Ruben de Carvalho), Lisboa, Edições Avante, 1995.

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

19. Quem a tem... (Jorge de Sena)

Quem a tem...


Não hei-de morrer sem saber
qual a cor da liberdade.

Eu não posso senão ser
desta terra em que nasci.
Embora ao mundo pertença
e sempre a verdade vença,
qual será ser livre aqui,
não hei-de morrer sem saber.

Trocaram tudo em maldade,
é quase um crime viver.
Mas, embora escondam tudo

me queiram cego e mudo,
não hei-de morrer sem saber
qual a cor da liberdade.

Jorge de Sena (1956)

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

18. Poema da Morte na Estrada (Poema: António Gedeão; Música e Voz: Manuel Freire)



Poema: António Gedeão;
Música e Voz: Manuel Freire.;
(1970)

Poema da Morte na Estrada

A morte, num sopro, colheu-os aos molhos.
Nem tiveram tempo para fechar os olhos.

Eles bem sabiam dos bancos da escola
como os homens dignos sucumbem na guerra.
Lá saber, sabiam.
A mão firme empunhando a espada ou a pistola,
morrendo sem ceder nem um palmo de terra.

Pois é.
Mas veio de lá a bomba, fulgurante como mil sóis,
não lhes deu tempo para serem heróis.

Eles bem sabiam que o último pensamento
devia estar reservado para a pátria amada.
Lá saber, sabiam.
Mas veio de lá a bomba e destruiu tudo num só momento.
Não lhes deu tempo para pensar em nada.

Agora,
na berma da estrada, nuns quinhentos metros,
são quinhentos mortos com os olhos abertos.


António Gedeão, in Linhas de Força (1967)

terça-feira, 18 de agosto de 2015

17. Queixa das almas jovens censuradas

Queixa das almas jovens censuradas
           
Dão-nos um lírio e um canivete
e uma alma para ir à escola
mais um letreiro que promete
raízes, hastes e corola.
         
Dão-nos um mapa imaginário
que tem a forma de uma cidade
mais um relógio e um calendário
onde não vem a nossa idade.
         
Dão-nos a honra de manequim
para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos um prémio de ser assim
sem pecado e sem inocência.
         
Dão-nos um barco e um chapéu
para tirarmos o retrato.
Dão-nos bilhetes para o céu
levado à cena num teatro.
         
Penteiam-nos os crânios ermos
com as cabeleiras das avós
para jamais nos parecermos
connosco quando estamos sós.
         
Dão-nos um bolo que é a história
da nossa história sem enredo
e não nos soa na memória
outra palavra que o medo.
         
Temos fantasmas tão educados
que adormecemos no seu ombro
somos vazios despovoados
de personagens de assombro.
         
Dão-nos a capa do evangelho
e um pacote de tabaco.
Dão-nos um pente e um espelho
pra pentearmos um macaco.
         
Dão-nos um cravo preso à cabeça
e uma cabeça presa à cintura
para que o corpo não pareça
a forma da alma que o procura.
         
Dão-nos um esquife feito de ferro
com embutidos de diamante
para organizar já o enterro
do nosso corpo mais adiante.
         
Dão-nos um nome e um jornal,
um avião e um violino.
Mas não nos dão o animal
que espeta os cornos no destino.
         
Dão-nos marujos de papelão
com carimbo no passaporte.
Por isso a nossa dimensão
não é a vida. Nem é a morte.
         

Natália Correia, Dimensão Encontrada, 1957

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

16. Corpo Renascido


1970

Poema (letra): Manuel Alegre
Voz: Francisco Fanhais
Música Pedro Lobo Antunes.


Corpo renascido
canção
Toco-te e respiras
sangue do meu sangue.

Cantando é como se dissesse: estou aqui.
Cantando eu nego o que me nega
acto de amor
coração perpendicular ao tempo.

Cantando é como se dissesse: estou aqui
na multidão que está dentro de mim.
Recuso a morte cantando
recuso a solidão.

Canção casa do mundo
viagem do homem para o homem
meu pedaço de pão rosa de maio
criança a rir na madrugada.

Cavalos correm nos teus campos
crinas ao vento
são os cavalos indomáveis que te levam
aos quatro cantos do mundo.

Lá onde um homem tiver sede
levarás teus cântaros
lá onde um homem tiver fome
levará teu pão.

Lá onde a liberdade foi assassinada
os teus cavalos livres levarás
e a espada refulgente
levarás ao teu sol canção.

Folha a folha desfolhada
folha a folha renascida
assim tu és canção:
viagem do homem para o homem.

Manuel Alegre, 1969.




MANUEL ALEGRE


domingo, 16 de agosto de 2015

15. YOU ARE WELCOME TO ELSINORE

YOU ARE WELCOME TO ELSINORE


Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte      violar-nos      tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas      portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício
     
Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida      há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição
     
Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor
E há palavras e nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita
     
Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar.

sábado, 15 de agosto de 2015

14. Pedra Filosofal



Poema (Letra): António Gedeão (1956)
Música: Manuel Freire (1969)

Canções de Abril. Publicado a 5/08/2008 por ialternativa


Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.


Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.


Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.


Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida,
que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.

António GedeãoIn Movimento Perpétuo, 1956

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

13. Notícias do Bloqueio


Aproveito a tua neutralidade,
o teu rosto oval,
a tua beleza clara,
para enviar notícias do bloqueio
aos que no continente esperam ansiosos.

Tu lhes dirás do coração o que sofremos
os dias que embranquecem os cabelos...
Tu lhes dirás a comoção e as palavras
que prendemos - contra bando - aos teus cabelos.

Tu lhes dirás o nosso ódio construído,
sustentando a defesa à nossa volta
- único acolchoado para a noite
florescida de fome e de tristezas.

Tua neutralidade passará
por sobre a barreira alfandegária
e a tua mala levará fotografias,
um mapa, duas cartas, uma lágrima...

Dirás como trabalhamos em silêncio,
como comemos silêncio, bebemos
silêncio, nadamos e morremos
feridos de silêncio duro e violento.

Vai pois e noticia com um archote
aos que encontrares de fora das muralhas
o mundo em que vemos, poesia
massacrada e medos à ilharga.

Vai pois e conta nos jornais diários
ou escreve com ácido nas paredes
o que viste, o que sabes, o que eu disse
entre dois bombardeamentos já esperados.

Mas diz-lhes que se mantém indevassável
o segredo das torres que nos erguem,
e suspensa delas uma flor em lume
grita o seu nome incandescente e puro.

Diz-lhes que se resiste na cidade
desfigurada por feridas de granadas
e enquanto a água e os víveres escasseiam
aumenta a raiva e a esperança reproduz-se.  

 Egito Gonçalves, Notícias do Bloqueio, 1952
       

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

11. Ar livre



Ar livre, que não respiro!
Ou são pela asfixia?
Miséria de cobardia
Que não arromba a janela
Da sala onde a fantasia
Estiola e fica amarela!

Ar livre, digo-vos eu!
Ou estamos nalgum museu
De manequins de cartão?
Abaixo! E ninguém se importe!
Antes o caos que a morte...
De par em par, pois então?!

Ar livre! Correntes de ar
Por toda a casa empestada!
(Vendavais na terra inteira,
A própria dor arejada,
- E nós nesta borralheira
De estufa calafetada!)

Ar livre! Que ninguém canta
Com a corda na garganta,
Tolhido da inspiração!
Ar livre, como se tem
Fora do ventre da mãe
Desligado do cordão!

Ar livre, sem restrições!
Ou há pulmões,
Ou não há!
Fechem as outras riquezas,
Mas tenham fartas as mesas
Do ar que a vida nos dá!
            
Miguel Torga, Cântico do Homem, 1950

terça-feira, 11 de agosto de 2015

10. "Eles" (um canto de emigração)




Ei-los que partem
novos e velhos
buscando a sorte
noutras paragens
noutras aragens
entre outros povos
ei-los que partem
velhos e novos

Ei-los que partem
de olhos molhados
coração triste
e a saca às costas
esperança em riste
sonhos dourados
ei-los que partem
de olhos molhados

Virão um dia
ricos ou não
contando histórias
de lá de longe
onde o suor
se fez em pão
virão um dia
ou não

Letra e música: Manuel Freire

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

9. Rendimento



Estava sentado no degrau da porta.
encostado à ombreira,
numa rua de ligação, sem montras,
onde só passam carros e as pessoas a encurtar caminho.



A face pálida, boca entreaberta,
barba por fazer e o cabelo em repas desoladas.

Dificilmente respirava, nada seguia com os olhos,
era muito abertos, ora piscando muito.

No regaço, e protegido pelos joelhos agudos,
tinha um boné no qual
esmolavam os transeuntes.

Da lapela, preso por um alfinete,
pendia amarrotado e sujo um boletim
da Assistência Nacional aos Tuberculosos.

Era o cartão de visita, o bilhete
de identidade, a certidão, a carta
de curso, a apólice de seguro,
o título do Estado.


E no boné, como se vê, caía o juro.

Jorge de Sena, 25 de junho de 1946.

        

domingo, 9 de agosto de 2015

8. Avante Camarada!

Refrão:
Avante, camarada, avante,
Junta a tua à nossa voz!
Avante, camarada, avante, camarada
E o sol brilhará para todos nós!
Ergue da noite, clandestino,
À luz do dia a felicidade,
Que o novo sol vai nascendo
Em nossas vozes vai crescendo
Um novo hino à liberdade
Que o novo sol vai nascendo
Em nossas vozes vai crescendo
Um novo hino à liberdade
Avante, camarada, avante,
Junta a tua à nossa voz!
Avante, camarada, avante, camarada
E o sol brilhará para todos nós!
Cerrem os punhos, companheiros,
Já vai tombando a muralha.
Libertemos sem demora
Os companheiros da masmorra
Heróis supremos da batalha
Libertemos sem demora
Os companheiros da masmorra
Heróis supremos da batalha
Avante, camarada, avante,
Junta a tua à nossa voz!
Avante, camarada, avante, camarada
E o sol brilhará para todos nós!
Para um novo alvorecer
Junta-te a nós, companheira,
Que comigo vais levar
A cada canto, a cada lar
A nossa rubra bandeira
Que comigo vais levar
A cada canto, a cada lar
A nossa rubra bandeira
Avante, camarada, avante,
Junta a tua à nossa voz!
Avante, camarada, avante, camarada
E o sol brilhará para todos nós!

Letra e música: Luís Cília



sábado, 8 de agosto de 2015

7. Soneto imperfeito da caminhada perfeita



Já não há mordaças, nem ameaças, nem algemas
que possam perturbar a nossa caminhada,
em que os poetas são os próprios versos dos poemas
e onde cada poema é uma bandeira desfraldada.

Ninguém fala em parar ou regressar.
Ninguém teme as mordaças ou algemas.
- O braço que bater há-de cansar
e os poetas são os próprios versos dos poemas.

Versos brandos... Ninguém mos peça agora.
Eu já não me pertenço: Sou da hora.
E não há mordaças, nem ameaças, nem algemas

que possam perturbar a nossa caminhada,
onde cada poema é uma bandeira desfraldada
e os poetas são os próprios versos dos poemas.
             
Sidónio Muralha, “Passagem de Nível” (1942)
in Obras Completas do Poeta. Lisboa, Universitária Editora, 2002.

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

6. Margem Sul (Canção Patuleia)



Margem Sul (Canção Patuleia)

Ó Alentejo dos pobres,
reino da desolação,
não sirvas quem te despreza,
é tua a tua nação.

Não vás a terras alheias
lançar sementes de morte.
É na terra do teu pão
que se joga a tua sorte.

Terra sangrenta de Serpa,
terra morena de Moura,
vilas de angústia em botão,
doce raiva em Baleizão.

Ó margem esquerda do Verão
mais quente de Portugal,
margem esquerda deste amor
feito de fome e de sal.

A foice dos teus ceifeiros
trago ao peito gravada,
ó minha terra morena
como bandeira sonhada.

Terra sangrenta de Serpa,
terra morena de Moura,
vilas de angústia em botão,
doce raiva em Baleizão.

Poema: Urbano Tavares Rodrigues
Música: Adriano Correia de Oliveira
Intérprete: Adriano Correia de Oliveira 
(in "Margem Sul", Orfeu, 1967; "Obra Completa", Movieplay, 1994) 

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

5. Os olhos do poeta


O poeta tem olhos de água para reflectirem todas as cores do mundo,
e as formas e as proporções exactas, mesmo das coisas que desconhecem.
Em seu olhar estão as distâncias sem mistério que há entre as estrelas,
e estão as estrelas luzindo na penumbra dos bairros da miséria,
com as silhuetas escuras dos meninos vadios esguedelhados ao vento.
Em seu olhar estão as neves eternas dos Himalaias vencidos
e as rugas maceradas das mães que perderam os filhos na luta entre as pátrias
e o movimento ululante das cidades marítimas onde se falam todas as línguas da Terra
e o gesto desolado dos homens que voltam ao lar com as mãos vazias e calejadas
e a luz do deserto incandescente e trémula, e os gelos dos pólos, brancos, brancos,
e a sombra das pálpebras sobre o rosto das noivas que não noivaram
e os tesouros dos oceanos desvendados maravilhando como contos de fada à hora da infância
e os trapos negros das mulheres dos pescadores esvoaçando como bandeiras aflitas
e correndo pela costa de mãos jogadas prò mar amaldiçoando a tempestade:
‑ todas as cores, todas as formas do mundo se agitam nos olhos do poeta.
Do seu olhar, que é um farol erguido no alto de um promontório,
sai uma estrela voando nas trevas,
tocando de esperança o coração dos homens de todas as latitudes.
E os dias claros, inundados de vida, perdem o brilho nos olhos do poeta
que escreve poemas de revolta com tinta de sol na noite de angústia que pesa no mundo.
                
Manuel da Fonseca, “Rosa dos Ventos” (1940)
in 
Obra Poética, Lisboa, Editorial Caminho, 1984, 7ª ed. revista pelo autor.
                  

terça-feira, 4 de agosto de 2015

3. Na noite do desânimo levanto a minha voz


HEROICAS
XL
             
(Madrid rendeu-se. Ranjo os dentes.)
             
Homens: na noite do desânimo 
levanto a minha voz
para pregar o ódio.

Um ódio total e violento
a todos os narcóticos
que adormecem a realidade
com neblinas de música.

Ódio às lágrimas mal choradas diante dos poentes,
à alegria das crianças mortas que teimam em rir nos olhos dos velhos,
às noites de insónia por causa duma mulher,
às flores que iluminam os mortos de alma,
ao álcool da arte-pura-para-esquecer,
aos versos com túneis acesos por dentro das palavras,
aos pássaros a cantarem os perfumes das árvores secas,
às valsas com voos de tule
‑ e até ao sol
que diminui o mundo
em indiferença de continuar.

Ódio ao mar a modelar deuses
nos nossos corpos feios de não ter cólera.

Ódio à primavera
‑ essa mulher voadora
que entra pelas janelas
com asas azuis
para que a nossa dor
pareça preguiça de existir.

Ódio às serenatas que o luar faz do céu à terra,
às pétalas nos cabelos dos fantasmas ao vento,
às mãos-dadas nas sendas brancas dos idílios,
à pele de frio doce dos amantes,
aos colos das mães a embalarem futuro,
às crianças com céus do tamanho dos olhos,
às cartas de paixão a prometerem suicídios (para beijos mais fundos),
às insinuações de paraíso nas vozes de pedir esmola,
às escadas de corda nos olhos das noivas das trapeiras,
às danças a perfumarem de sexo a derrota,
às ninfas disfarçadas em canteiros de jardins,
e aos recantos foscos
onde escondemos a Verdade
em galerias de evasão
‑ só para que os nossos olhos continuem límpidos
a ignorarem todos os negrumes
com escadas até ao centro da terra.

Ódio ao disfarce, às máscaras, ao «falemos noutra coisa»,
aos desvios, às fontes dos claustros, ao «vamos logo ao cinema»,
aos problemas de xadrez, aos dramas de ciúme, às infantas do fogo das lareiras,
e aos que não têm a coragem
de estacar, pálidos,
com unhas na carne
a olhar de frente,
sem arrancar os olhos,
os caminhos dos mortos sagrados
até aos horizontes onde os homens se ofuscam das manhãs virgens.

Ódio a todas as fugas, a todos os véus,
a todas as aceitações, a todas as morfinas,
a todas as mãos ocas das prostitutas,
a todas as mulheres nuas em coxins de afagos,
para nos obrigarem a esquecer...

Mas eu não quero esquecer, ouviram?
Não quero esquecer!

Quero lembrar-me sempre, sempre e sempre
deste minuto de abismo,
para transmiti-lo de alma em alma,
de treva em treva,
de corvo em corvo,
de escarpa em escarpa,
de esqueleto em esqueleto,
de forca em forca,
até ao Ranger do Grande Dia
para a Salvação do Mundo
sem anjos
nem demónios
‑ mas só homens e Terra.
              
José Gomes Ferreirapoema XL da série Heroicas (1936-1937-1938) in Poesia I, 1948
             

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

2. Os Vampiros











No céu cinzento
Sob o astro mudo
Batendo as asas
Pela noite calada
Vem em bandos
Com pés veludo
Chupar o sangue
Fresco da manada

Se alguém se engana
Com seu ar sisudo
E lhes franqueia
As portas à chegada
Eles comem tudo
Eles comem tudo
Eles comem tudo
E não deixam nada
(O último concerto de Zeca Afonso em 29 de Janeiro de 1983, no Coliseu)



A toda a parte
Chegam os vampiros
Poisam nos prédios
Poisam nas calçadas
Trazem no ventre
Despojos antigos
Mas nada os prende
Às vidas acabadas

São os mordomos
Do universo todo
Senhores à força
Mandadores sem lei
Enchem as tulhas
Bebem vinho novo
Dançam a ronda
No pinhal do rei

Eles comem tudo
Eles comem tudo
Eles comem tudo
E não deixam nada







No chão do medo
Tombam os vencidos
Ouvem-se os gritos
Na noite abafada
Jazem nos fossos
Vítimas dum credo
E não se esgota
O sangue da manada

Se alguém se engana
Com seu ar sisudo
E lhes franqueia
As portas à chegada
Eles comem tudo
Eles comem tudo
Eles comem tudo
E não deixam nada

Eles comem tudo
Eles comem tudo
Eles comem tudo
E não deixam nada
José Afonso, 1963.

domingo, 2 de agosto de 2015

1. Justiça

Outrora foste a mãe abençoada
Dos bons, dos virtuosos e inocentes,
Enquanto que aos teus pés iam, trementes,
Os maus, pelo rigor da tua espada.
Hoje, prostituída e desbragada,
Vendida a consciência aos prepotentes,
És capa de maldosos e impudentes
E andas até com eles de mão dada.
Ao ponto que há-de ver-se um belo dia,
Nas folhas publicadas esta notícia:
"Meteram ontem à noite na enxovia
Uma rameira célebre - a Justiça.
Foi presa por andar na Mouraria
Desacatando as ordens da polícia."
Dizem que tu és a Justiça?!
Ah! Loucura! Ah! Ilusão!
Tu és da raça mestiça
Do ouro e da corrupção!
Abre os teus olhos Justiça!
De que te serve a balança?
Desvirtuou-te a cobiça,
Em ti já não há confiança!

Alexandre José Alves
(publicado na Guitarra de Portugal, a 29 de setembro de 1929)

O. Menino do Bairro Negro




Olha o sol que vai nascendo 
Anda ver o mar
Os meninos vão correndo
Ver o sol chegar

Menino sem condição
Irmão de todos os nus
Tira os olhos do chão
Vem ver a luz

Menino do mal trajar
Um novo dia lá vem
Só quem souber cantar
Vira também

Negro bairro negro
Bairro negro
Onde não há pão
Não há sossego

Menino pobre o teu lar
Queira ou não queira o papão
Há-de um dia cantar
Esta canção


Olha o sol que vai nascendo
Anda ver o mar
Os meninos vão correndo
Ver o sol chegar

Se até da gosto cantar
Se toda a terra sorri
Quem te não há-de amar
Menino a ti

Se não é fúria a razão
Se toda a gente quiser
Um dia hás-de aprender
Haja o que houver

Negro bairro negro
Bairro negro
Onde não há pão
Não há sossego

Menino pobre o teu lar
Queira ou não queira o papão
Há-de um dia cantar
Esta canção

 
José Afonso, 1963