sexta-feira, 13 de novembro de 2015

81. O Portugal futuro (Ruy Belo)

O PORTUGAL FUTURO

O portugal futuro é um país
aonde o puro pássaro é possível
e sobre o leito negro do asfalto da estrada
as profundas crianças desenharão a giz
esse peixe da infância que vem na enxurrada
e me parece que se chama sável
Mas desenhem elas o que desenharem
é essa a forma do meu país
e chamem elas o que lhe chamarem
portugal será e lá serei feliz
Poderá ser pequeno como este
ter a oeste o mar e a espanha a leste
tudo nele será novo desde os ramos à raiz
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
e na avenida que houver à beira-mar
pode o tempo mudar será verão
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o portugal futuro
               
Ruy Belo (1933-1978), Homem de Palavra(s), 1970

80. Qualquer dia (José Afonso e Fernando Miguel Bernardes)




QUALQUER DIA


No inverno bato o queixo
sem mantas na manhã fria
No inverno bato o queixo
Qualquer dia
Qualquer dia

No Inverno aperto o cinto
Enquanto o vento assobia.
No inverno aperto o cinto
Qualquer dia
Qualquer dia

No Inverno vou pôr lume
Lenha verde não ardia.
No inverno vou pôr lume
Qualquer dia
Qualquer dia

No Inverno penso muito
Oh que coisas eu já via
No inverno penso muito
Qualquer dia
Qualquer dia

No Inverno ganhei ódio
E juro que o não queria
No inverno ganhei ódio
Qualquer dia
Qualquer dia.
   
Música: José Afonso
Letra: F. Miguel Bernardes
Intérprete: Zeca Afonso
In: Contos Velhos Rumos Novos, 1969

terça-feira, 20 de outubro de 2015



 NOUTROS LUGARES 
 
Não é que ser possível ser feliz acabe,

quando se aprende a sê-lo com bem pouco.

Ou que não mais saibamos repetir o gesto

que mais prazer nos dá, ou que daria

a outrem um prazer irresistível. Não:

o tempo nos afina e nos apura:
faríamos o gesto com infinda ciência.
Não é que passem as pessoas, quando

o nosso pouco é feito da passagem delas.

Nem é também que ao jovem seja dado

o que a mais velhos se recusa. Não.



É que os lugares acabam. Ou ainda antes

de serem destruídos, as pessoas somem,

e não mais voltam onde parecia

que elas ou outras voltariam sempre

por toda a eternidade. Mas não voltam,

desviadas por razões ou por razão nenhuma.



É que as maneiras, modos, circunstâncias
 
mudam. Desertas ficam praias que brilhavam
não de água ou sol mas de solta juventude.

As ruas rasgam casas onde leitos

já frios e lavados não rangiam mais.

E portas encostadas só se abrem sobre

a treva que nenhuma sombra aquece.


O modo como tínhamos ou víamos,

em que com tempo o gesto sempre o mesmo

faríamos com ciência refinada e sábia
o mesmo gesto que seria útil,

se o modo e a circunstância persistissem),

tornou-se sem sentido e sem lugar.


Os outros passam, tocam-se, separam-se,

exatamente como dantes. Mas

aonde e como? Aonde e como? Quando?

Em que praias, que ruas, casas, e quais leitos,

a que horas do dia ou da noite, não sei.

Apenas sei que as circunstâncias muda
m
e que os lugares acabam. E que a gente

não volta ou não repete, e sem razão, o que

só por acaso era a razão dos outros.



E do que vi ou tive uma saudade sinto,

feita de raiva e do vazio gélido,

não é saudade, não. Mas muito apenas

o horror de não saber como se sabe agora

o mesmo que aprendi. E a solidão

de tudo ser igual doutra maneira.

E o medo de que a vida seja isto:

um hábito quebrado que se não reata,

senão noutros lugares que não conheço.
 
Jorge de Sena (1967)

segunda-feira, 19 de outubro de 2015

Zeca Afonso - Viva o Poder Popular


Não há velório nem morto
Nem círios para queimar
Quando isto der prò torto
Não te ponhas a cavar

Quando isto der prò torto
Lembra-te cá do colega
Não tenhas medo da morte
Que daqui ninguém arreda

Se a CAP é filha do facho
Se o facho é filho da mãe
O MAP é filho do Portas
Do Barreto e mais alguém

Às aranhas anda o rico
Transformado em democrata
Às aranhas anda o pobre
Sem saber quem o maltrata

Às aranhas te vi hoje
Soldado, na casamata
Militares colonialistas
Entram já na tua casa

Vinho velho vinho novo
Tudo a terra pode dar
Dêm as pipas ao povo
Só ele as sabe guardar

Anda cá abaixo, ó Aleixo
Vem partir o fundo ao tacho
Quanto mais lhe vejo o fundo
Mais pluralista o acho

Os barões da vida boa
Vão de manobra em manobra
Visitar as capelinhas
Vender pomada da cobra

A palavra socialismo
Como está hoje mudada
De Colarinhos a Texas
Sempre muito aperaltada

Sempre muito aperaltada
Fazendo o V da vitória
Para enganar o proleta
Hás-de vir comigo a glória

O Willy Brandt é macaco
O Giscard é macacão
O capital parte o coco
Só não ri a emigração

De caciques e de bufos
Mandei fazer um sacrário
Para pôr no travesseiro
Dum cura reaccionário

Não sei quem seja de acordo
Como vamos terminar
Vinho velho vinho novo
Viva o Poder Popular


domingo, 18 de outubro de 2015

79. Tejo que levas as águas (Manuel da Fonseca)



Poema de Manuel da Fonseca, interpretado por Adriano Correia de Oliveira

Tejo que levas as águas

Tejo que levas as águas
Correndo de par em par
Lava a cidade de mágoas
Leva as mágoas para o mar

Lava-a de crimes espantos
De roubos fomes terror
Lava a cidade de quantos
Do ódio fingem amor

Lava bancos e empresas
Dos comedores de dinheiro
Que dos salários de tristeza
Arrecadam lucro inteiro

Lava palácios vivendas
Casebres bairros da lata
Leva negócios e rendas
Que a uns farta e a outros mata

Leva nas águas as grades
De aço e silêncio forjadas
Deixa soltar-se a verdade
Das bocas amordaçadas

Lava avenidas de vícios
Vielas de amores venais
Lava albergues e hospícios
Cadeias e hospitais

Afoga empenhos favores
Vãs glórias, ocas palmas
Leva o poder dos senhores
Que compram corpos e almas

Das camas de amor comprado
Desata abraços de lodo
Rostos corpos destroçados
Lava-os com sal e iodo

Tejo que levas as águas
Correndo de par em par
Lava a cidade de mágoas
Leva as mágoas para o mar.
             
Manuel da Fonseca, Poemas para Adriano, 1972

sábado, 17 de outubro de 2015

78. O meu amor mariñeiro (Poema de Manuel Alegre, interpretado por Fuxan Os Ventos)



"O meu amor mariñeiro" é uma canção composta pelo grupo  galego "Fuxan os Ventos", com letra em galego de Lois Álvarez Pousa, adaptada  do poema "A Trova do Amor Lusíada", original em português do poeta  Manuel Alegre, com música de Xosé L. Rivas Cruz.

O meu amor mariñeiro

Meu amor é mariñeiro
e vive no alto mar;
son os seus brazos o vento
ninguén llos pode amarrar.

Meu amor é mariñeiro
e cando me ven falar
pon un carabel nos beizos
no corazón un cantar.

EU SON LIBRE COMO AS AVES
E PASO A VIDA A CANTAR;
CORAZÓN QUE NACE LIBRE
NON SE PODE ENCADEAR.

Traio un navío nas veas
eu nacín pra mariñar;
quen tente porme cadeas
háme primeiro matar!
Vale máis ser libre un día
no confín do bravo mar,
que vivir toda a vida,
preso, escravo e a calar!

El vive alá lonxe, lonxe,
onde brúa o bravo mar,
e coa súa forza inmorrente
onda nós ha de voltar!

EU SON LIBRE COMO AS AVES
E PASO A VIDA A CANTAR;
CORAZÓN QUE NACE LIBRE
NON SE PODE ENCADEAR.

Nun momento, de repente,
eu sei que un día virá,
como se o mar e o vento,
en nós abrise a cantar.

HEI PASAR POLO LUGARES
COMO O VENTO NO AREAL
ABRIR TÓDALAS VENTANAS
COA ESCRAVITUDE ACABAR!

Polas rúas das ciudades
hei de pasar a cantar,
traguendo na mau direita
a espada da libertá.
Como se un navío entrase
de supeto, na ciudá,
traguendo a voar no mástil
bandeiras de libertá!

HEI PASAR POLO LUGARES
COMO O VENTO NO AREAL
ABRIR TÓDALAS VENTANAS

COA ESCRAVITUDE ACABAR!

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TROVA DO AMOR LUSÍADA


Meu amor é marinheiro
quando suas mãos me despem
é como se o vento abrisse
as janelas do meu corpo.


Quando seus dedos me tocam
é como se no meu sangue
nadassem todos os peixes
que nadam no mar salgado.


Meu amor é marinheiro.
Quando chega à minha beira
acende um cravo na boca
e canta desta maneira:


- Eu sou livre como as aves
e passo a vida a cantar
coração que nasceu livre
não se pode acorrentar.


Trago um navio nas veias
eu nasci para marinheiro
quem quiser pôr-me cadeias
há-de matar-me primeiro.


Meu amor é marinheiro
e mora no alto mar
seus braços são como o vento
ninguém os pode amarrar.


Quando chega à minha beira
todo o meu sangue é um rio
onde o meu amor aporta
seu coração - um navio.


Meu amor disse que eu tinha
uns olhos como gaivotas
e uma boca onde começa
o mar de todas as rotas.


Meu amor disse que eu tinha
na boca um gosto a saudade
e uns cabelos onde nascem
os ventos e a liberdade.
   (…)



Manuel Alegre

Interpretação de Adriano Correia de Oliveira - aqui
Interpretação de Anabela - aqui

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O meu amor é marinheiro

Meu amor é marinheiro
Meu amor é marinheiro
E mora no alto mar
Seus braços são como o vento
Ninguém os pode amarrar.

Quando chega à minha beira
Todo o meu sangue é um rio
Onde o meu amor aporta
Meu coração - um navio.

Meu amor disse que eu tinha
Na boca um gosto a saudade
E uns cabelos onde nascem
Os ventos e a liberdade.

Meu amor é marinheiro
Quando chega à minha beira
Acende um cravo na boca
E canta desta maneira.

Eu vivo lá longe, longe
Onde moram os navios
Mas um dia hei-de voltar
Às águas dos nossos rios.

Hei-de passar nas cidades
Como o vento nas areias
E abrir todas as janelas
E abrir todas as cadeias.

Assim falou meu amor
Assim falou-me ele um dia
Desde então eu vivo à espera
Que volte como dizia.

Manuel Alegre

Interpretado por Amália Rodrigues, com música de Alain Oulman - aqui
Interpretado por Maria Bethânia - aqui

77. Como Ulisses te busco e desespero (Manuel Alegre)

COMO ULISSES TE BUSCO E DESESPERO


Como Ulisses te busco e desespero
como Ulisses confio e desconfio
e como para o mar se vai um rio
para ti vou. Só não me canta Homero.

Mas como Ulisses passo mil perigos
escuto a sereia e a custo me sustenho
e embora tenha tudo nada tenho
que em te não vendo tudo são castigos.

Só não me canta Homero. Mas como Ulisses
vou com meu canto como um barco
ouvindo o teu chamar ‑ Pátria Sereia
Penélope que não te rendes – tu

que esperas a tecer um tempo ideia
que de novo teu povo empunhe o arco
como Ulisses por ti nesta odisseia.
           
Manuel Alegre, Praça da Canção/O Canto e As Armas

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

54. Eis aqui o agiota (Fausto)


Eis aqui o agiota


Eis aqui o agiota
Eis ali a agiotagem


De novo mergulho na luz do astro da música
A minha cabeça
De novo à procura daquela
Melodia que teima
Em nascer às avessas
Se ribomba no contrapasso e se já cruza o ciberespaço
Então
Cuida de ti usurário
Na zona escura do erário
E da folia financeira
Do teu corpo fundo
E mais anónimo
À volta do mundo
Atravessando fronteiras

Esvoaçam

À tua volta esvoaçam
Taxas de juros e câmbios
De cambistas e banqueiros
Títulos e dívidas
Contraseguros
Visões garridas
Malabaristas
E oníricas
Do dinheiro

A minha guitarra não toca para ti
A minha guitarra rosna

Obeso e rebarbativo alardeando
A engorda
O teu figurino
Obesa a corruptela que mais
Disfarça e transforma
Selvagens capitalismos
Em brandos neoliberalismos
O mais doce dos eufemismos
E então
Tu provas na perfeição
Que geres com o teu cifrão
A infelicidade dos outros
Reduzes um drama
O do maior desemprego
A centigramas
À percentagem de uns poucos

Encurralados

Os mais jovens encurralados
Em becos rasos de seringas
Contrafeitos mercadores
Em praças e ruas
Ruelas e avenidas
Envergonhadas
E mais anuladas
As mãos estendidas
De arrumadores

Morreu a proletária ditadura
A ditadura do mercado já nasceu

Se cada vez menos produzem
Mais para a maior minoria
Toda a riqueza
Se cada vez menos para a imensa maioria sobram
Sobras que te caem da mesa
Da guerrilha dos capitais
Em doces paraísos fiscais

Então
Cuida de ti argentário
O que retrata este sudário
É a maior parte do mundo
Que sobrevive na penumbra
De olhos postos em ti
Moribundo
Mas que te olha já defunto

E enches a boca

De direitos humanos
Enches a boca
De fala
Do pensamento
Mas o do trabalho nunca
E porque será
Que esse direito
No esquecimento fica
Se crucifica
Mais
Se abdica
Mas fica a pergunta

Keynes
Ao pé de ti
E arrumado a um canto
É a alegoria
Ou o retrato de um santo?

Fausto Bordalo Dias (1974)

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

51.Ser ou não ser (Manuel Alegre)

SER OU NÃO SER
         

                                                          «Qualquer coisa está podre no Reino da Dinamarca»
                                                                                                    Shakespeare (Hamlet)
           
Qualquer coisa está podre no Reino da Dinamarca.
Se os novos partem e ficam só os velhos
e se do sangue as mãos trazem a marca
se os fantasmas regressam e há homens de joelhos
qualquer coisa está podre no Reino da Dinamarca.

Apodreceu o sol dentro de nós
apodreceu o vento em nossos braços.
Porque há sombras na sombra dos teus passos
há silêncios de morte em cada voz.

Ofélia-Pátria jaz branca de amor.
Entre salgueiros passa flutuando.

E anda Hamlet em nós por ela perguntando
entre ser e não ser firmeza indecisão.

Até quando? Até quando?

Já de esperar se desespera. E o tempo foge
e mais do que a esperança leva o puro ardor.
Porque um só tempo é o nosso. E o tempo é hoje.
Ah se não ser é submissão ser é revolta.
Se a Dinamarca é para nós uma prisão
e Elsenor se tornou a capital da dor
ser é roubar à dor as próprias armas
e com elas vencer estes fantasmas
que andam à solta em Elsenor.
           
Manuel Alegre, 1967
       

sábado, 19 de setembro de 2015

49. No meu país há uma palavra proibida (Manuel Alegre)

No meu país há uma palavra proibida.
Mil vezes a prenderam mil vezes cresceu.
E pulsa em nós como o pulsar da própria vida
sabe ao sal deste mar tem a cor deste céu
no meu país há uma palavra proibida.
No meu país há uma palavra que se diz
com a mesma ternura da palavra irmã.
Palavra quente como o sol do meu país
palavra clara como é cada manhã
apesar da tristeza lá no meu país.
No meu país há uma palavra que se escreve
sobre os muros à pressa pela noite dentro.
Uma palavra assim nenhuma língua a teve
tão ausência-presença tão feita de vento
tão impossível de apagá-la onde se escreve.
No meu país há uma palavra onde se guarda
tudo o que se não teve tudo o que não foi.
Por ela a humilhação fabrica uma espingarda
e há um tempo de luta no tempo que dói
nessa palavra que nos guia que nos guarda.
Palavra que murmura nos verdes pinheiros
o recado que o mar vem escrever nas areias.
Se já em nós morreram velhos marinheiros
há uma palavra que semeia em nossas veias
um país que murmura nos verdes pinheiros.
No meu país em cada homem há uma palavra
que rasga as trevas e as prisões: palavra-chave
capaz de transformar em asa a mão que lavra.
E é inútil prenderem-na que é luz e ave
no meu país em cada homem essa palavra.
Palavra feita de montanhas praias vento.
De verde pinho e mar azul. De sol. De sal.
Não vale a pena proibirem o pensamento.
Há uma palavra clandestina em Portugal
que se escreve com todas as harpas do vento.
       
Manuel Alegre, O Canto e As Armas, 1967

sexta-feira, 18 de setembro de 2015

48. Somos livres (Ermelinda Duarte)


Somos Livres

Ontem apenas
fomos a voz sufocada
dum povo a dizer não quero;
fomos os bobos-do-rei
mastigando desespero.

Ontem apenas
fomos o povo a chorar
na sarjeta dos que, à força,
ultrajaram e venderam
esta terra, hoje nossa.

Uma gaivota voava, voava,
assas de vento,
coração de mar.
Como ela, somos livres,
somos livres de voar.

Uma papoila crescia, crescia,
grito vermelho
num campo cualquer.
Como ela somos livres,
somos livres de crescer.

Uma criança dizia, dizia
"quando for grande
não vou combater".
Como ela, somos livres,
somos livres de dizer.

Somos um povo que cerra fileiras,
parte à conquista
do pão e da paz.
Somos livres, somos livres,
não voltaremos atrás.

Letra e música: Ermelinda Duarte

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

47. As palavras (Manuel Alegre)

AS PALAVRAS

Manuel Alegre
Palavras tantas vezes perseguidas
palavras tantas vezes violadas
que não sabem cantar ajoelhadas
que não se rendem mesmo se feridas.
Palavras tantas vezes proibidas
e no entanto as únicas espadas
que ferem sempre mesmo se quebradas
vencedoras ainda que vencidas.
Palavras por quem eu já fui cativo
na língua de Camões vos querem escravas
palavras com que canto e onde estou vivo.
Mas se tudo nos levam isto nos resta:
estamos de pé dentro de vós palavras.
Nem outra glória há maior do que esta.
           
Manuel Alegre, O Canto e As Armas, 1967

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

46. Final (Fausto)


Final 

Mais de mil léguas
eu andei
fiz quase todo
e o que não sei.
Quem nos rouba
tem forma de balão
à frente
mas eu tenho na mão
o alfinete.
Quanto mais perco
eu mais ganho
esta raiva surda
p'ra estoirar.
Farto de lamber
o fundo ao prato
sapato.
Vou dar um pontapé
para isto acabar!
Vou dar uma volta
a isto vou!
Que a força
nunca se esgotou!
E se mil anos vivesse,
mil anos havia de lutar!
               
(Um beco com saída, 1975)
Palavras, música e voz — Fausto Bordalo Dias

terça-feira, 15 de setembro de 2015

45. Ouvindo Beethoven (José Saramago)

OUVINDO BEETHOVEN

Venham leis e homens de balanças,
Mandamentos daquém e dalém mundo,
Venham ordens, decretos e vinganças,
Desça o juiz em nós até ao fundo.

Nos cruzamentos todos da cidade,
Brilhe, vermelha, a luz inquisidora,
Risquem no chão os dentes da vaidade
E mandem que os lavemos a vassoura.

A quantas mãos existam, peçam dedos,
Para sujar nas fichas dos arquivos,
Não respeitem mistérios nem segredos,
Que é natural nos homens serem esquivos.

Ponham livros de ponto em toda a parte,
Relógios a marcar a hora exacta,
Não aceitem nem votem noutra arte
Que a prosa de registo, o verso data.

Mas quando nos julgarem bem seguros,
Cercados de bastões e fortalezas,
Hão-de cair em estrondo os altos muros
E chegará o dia das surpresas.
                   
José Saramago, Poema a Boca Fechada, 1966

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

44. Trova do vento que passa (Poema: Manuel Alegre; Música: Alain Oulman; Voz: Amália Rodrigues)



Poema: Manuel Alegre
Música: Alain Oulman
Voz: Amália Rodrigues


Trova do vento que passa

Pergunto ao vento que passa
notícias do meu país
e o vento cala a desgraça
o vento nada me diz.
   
Pergunto aos rios que levam
tanto sonho à flor das águas
e os rios não me sossegam
levam sonhos deixam mágoas.
 
Levam sonhos deixam mágoas
ai rios do meu país
minha pátria à flor das águas
para onde vais? Ninguém diz.

 
Se o verde trevo desfolhas
pede notícias e diz
ao trevo de quatro folhas
que morro por meu país.
 
Pergunto à gente que passa
por que vai de olhos no chão.
Silêncio -- é tudo o que tem
quem vive na servidão.
 
Vi florir os verdes ramos
direitos e ao céu voltados.
E a quem gosta de ter amos
vi sempre os ombros curvados.
 
E o vento não me diz nada
ninguém diz nada de novo.
Vi minha pátria pregada
nos braços em cruz do povo.
 
Vi minha pátria na margem
dos rios que vão pró mar
como quem ama a viagem
mas tem sempre de ficar.
 
Vi navios a partir
(minha pátria à flor das águas)
vi minha pátria florir
(verdes folhas verdes mágoas).
 
Há quem te queira ignorada
e fale pátria em teu nome.
Eu vi-te crucificada
nos braços negros da fome.
 
E o vento não me diz nada
só o silêncio persiste.
Vi minha pátria parada
à beira de um rio triste.
 
Ninguém diz nada de novo
se notícias vou pedindo
nas mãos vazias do povo
vi minha pátria florindo.
 
E a noite cresce por dentro
dos homens do meu país.
Peço notícias ao vento
e o vento nada me diz.
 
Quatro folhas tem o trevo
liberdade quatro sílabas.
Não sabem ler é verdade
aqueles pra quem eu escrevo.
 
Mas há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça
há sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.
 
Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não.
 
Manuel Alegre,
Praça da Canção, 1965.

domingo, 13 de setembro de 2015

43. Como ouvi Linda cantar por seu amigo José (Manuel Alegre)

COMO OUVI LINDA CANTAR POR SEU AMIGO JOSÉ

Se sabeis novas do meu amigo
novas dizei-me que vou morrendo
por meu amigo que me levaram
num carro negro de madrugada.

Dizei-me novas do meu amigo
em sua torre tecendo os dias
dai-me palavras pra lhe mandar
com ruas brisa domingos sol.

Se sabeis novas de meu amigo
novas dizei-me que desespero
por meu amigo que longe espera
tecendo os dias tecendo a esperança.

Mando recados não sei se chegam
leva-me ó vento da noite triste
ou diz-me novas de meu amigo
que tece o tempo na torre negra.

Que tece o tempo que tece a esperança.
Já da ternura fiz uma corda
ó vento prende-a na torre negra
que meu amigo por ela desça.

Por essa corda feita de lágrimas
que meu amigo por ela desça
ou mande a esperança que vai tecendo
que desespero sem meu amigo.
               
Manuel Alegre, Praça da Canção/O Canto e As Armas,(1965) 1.ª ed. de bolso, Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2000, pp. 85-86

sábado, 12 de setembro de 2015

42.Venham mais cinco (José Afonso)


Venham mais cinco

Venham mais cinco
Duma assentada
Que eu pago já
Do branco ou tinto
Se o velho estica
Eu fico por cá

Se tem má pinta
Dá-lhe um apito
E põe-no a andar
De espada à cinta
Já crê que é rei
Dàquém e Dàlém Mar

Não me obriguem
A vir para a rua
Gritar
Que é já tempo
D'embalar a trouxa
E zarpar

A gente ajuda
Havemos de ser mais
Eu bem sei
Mas há quem queira
Deitar abaixo
O que eu levantei

A bucha é dura
Mais dura é a razão
Que a sustem
Só nesta rusga
Não há lugar
Pr'ós filhos da mãe


Não me obriguem
A vir para a rua
Gritar
Que é já tempo
D'embalar a trouxa
E zarpar


Bem me diziam
Bem me avisavam
Como era a lei
Na minha terra
Quem trepa
No coqueiro
É o rei

José Afonso, 1974

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

41. Os sapatos (José Carlos Ary dos Santos)

Os sapatos
             
Enfio os mocassinos do meu tempo nos pés
e piso a senda lenda dos meus antepassados.
Hoje, sou eu que passo o cabo das tormentas nos cafés
quando vomito a Índia nos lavabos.

Se Egas Moniz foi herói
duma bravata bonita
eu sou quem paga o resgate
da história que me limita.

A linda Inês dos meus olhos
foi reposta em seu sossego
não há hidroenergia
que ressuscite o Mondego
não há barragem que estanque
o sonho que é hoje infante
na ponta de um pesadelo.

Ai flores Ai flores de lapela
flores de plástico e de feltro
filigrana caravela
que estás cada vez mais perto
filha de Vasco da Gama
dado como pai incerto.

Partem tão tristes os pés
de quem te arrasta consigo
tão andados      tão modernos
tão vazios de sentido
tão queimados deste inferno
que têm as solas gastas
e o caminho puído.

Partem tão tristes os pés
de quem te arrasta consigo
passeiam
     andam
          desandam
                  param
                    Perseguem
                         persistem
                              caminham
                                      calculam
                                             correm
doem      detêm      desistem.
Partem tão tristes os tristes
tão fora de chegar bem
         
José Carlos Ary dos Santos, “Adereços, Endereços” (1965)in Obra Poética, 2ª ed. Lisboa: Edições Avante, 1995, pp. 158-159.
           

quinta-feira, 10 de setembro de 2015

40. E depois do adeus (Letra: José Niza; Música: José Calvário; Voz: Paulo de Carvalho)


Poema: José Niza
Música: José Calvário
Voz: Paulo de Carvalho


E depois do adeus

Quis saber quem sou
O que faço aqui
Quem me abandonou
De quem me esqueci
Perguntei por mim
Quis saber de nós
Mas o mar
Não me traz
Tua voz.

Em silêncio, amor
Em tristeza e fim
Eu te sinto, em flor
Eu te sofro, em mim
Eu te lembro, assim
Partir é morrer
Como amar
É ganhar
E perder

Tu vieste em flor
Eu te desfolhei
Tu te deste em amor
Eu nada te dei
Em teu corpo, amor
Eu adormeci
Morri nele
E ao morrer
Renasci

E depois do amor
E depois de nós
O dizer adeus
O ficarmos sós
Teu lugar a mais
Tua ausência em mim
Tua paz
Que perdi
Minha dor que aprendi
De novo vieste em flor
Te desfolhei...

E depois do amor
E depois de nós
O adeus
O ficarmos sós.

José Niza

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

39. As pessoas sensíveis (Sophia de Mello Breyner Andresen)

As pessoas sensíveis

As pessoas sensíveis não são capazes
De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas

O dinheiro cheira a pobre e cheira
À roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo
Porque não tinham outra
Porque cheira a pobre e cheira
A roupa
Que depois do suor não foi lavada
Porque não tinham outra

"Ganharás o pão com o suor do teu rosto"
Assim nos foi imposto
E não:
"Com o suor dos outros ganharás o pão"

Ó vendilhões do templo
Ó construtores
Das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheios de devoção e de proveito

Perdoai-lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem

Sophia de Mello Breyner Andresen, Livro Sexto (1962)

terça-feira, 8 de setembro de 2015

38. Tourada (Música e voz: Fernando Tordo; Poema: José Carlos Ary dos Santos)




TOURADA

Não importa sol ou sombra
camarotes ou barreiras
toureamos ombro a ombro
as feras.

Ninguém nos leva ao engano
toureamos mano a mano
só nos podem causar dano
espera.

Entram guizos chocas e capotes
e mantilhas pretas
entram espadas chifres e derrotes
e alguns poetas
entram bravos cravos e dichotes
porque tudo o mais
são tretas.

Entram vacas depois dos forcados
que não pegam nada.
Soam brados e olés dos nabos
que não pagam nada
e só ficam os peões de brega
cuja profissão
não pega.

Com bandarilhas de esperança
afugentamos a fera
estamos na praça
da Primavera.

Nós vamos pegar o mundo
pelos cornos da desgraça
e fazermos da tristeza
graça.

Entram velhas doidas e turistas
entram excursões
entram benefícios e cronistas
entram aldrabões
entram marialvas e coristas
entram galifões
de crista.

Entram cavaleiros à garupa
do seu heroísmo
entra aquela música maluca
do passodoblismo
entra a aficionada e a caduca
mais o snobismo
e cismo...

Entram empresários moralistas
entram frustrações
entram antiquários e fadistas
e contradições
e entra muito dólar muita gente
que dá lucro as milhões.
E diz o inteligente
que acabaram as canções.



José Carlos Ary dos Santos, As Palavras das Cantigas (organização, coordenação e notas de Ruben de Carvalho). Lisboa, Edições Avante, 1995.


             

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

37. Para atravessar contigo o deserto do mundo (Sophia de Mello Breyner Andresen)

Para atravessar o deserto do mundo

Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei

Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso

Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo

Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento

Sophia de Mello Breyner Andresen, Livro Sexto (1962)

domingo, 6 de setembro de 2015

36. O que faz falta! (José Afonso)



O que faz falta! 

Quando a corja topa da janela
O que faz falta
Quando o pão que comes sabe a merda
O que faz falta

O que faz falta é avisar a malta
O que faz falta
O que faz falta é avisar a malta
O que faz falta

Quando nunca a noite foi dormida
O que faz falta
Quando a raiva nunca foi vencida
O que faz falta

O que faz falta é animar a malta
O que faz falta
O que faz falta é acordar a malta
O que faz falta

Quando nunca a infância teve infância
O que faz falta
Quando sabes que vai haver dança
O que faz falta

O que faz falta é animar a malta
O que faz falta
O que faz falta é empurrar a malta
O que faz falta

Quando um cão te morde a canela
O que faz falta
Quando a esquina há sempre uma cabeça
O que faz falta

O que faz falta é animar a malta
O que faz falta
O que faz falta é empurrar a malta
O que faz falta

Quando um homem dorme na valeta
O que faz falta
Quando dizem que isto é tudo treta
O que faz falta

O que faz falta é agitar a malta
O que faz falta
O que faz falta é libertar a malta
O que faz falta

Se o patrão não vai com duas loas
O que faz falta
Se o fascista conspira na sombra
O que faz falta

O que faz falta é avisar a malta
O que faz falta
O que faz falta é dar poder a malta
O que faz falta

José Afonso, 1973

sábado, 5 de setembro de 2015

35. Ressurgiremos (Sophia de Mello Breyner Andresen)

 Ressurgiremos


Ressurgiremos ainda sob os muros de Cnossos
E em Delphos centro do mundo
Ressurgiremos ainda na dura luz de Creta
Ressurgiremos ali onde as palavras
São o nome das coisas
E onde são claros e vivos contornos
Na aguda luz de Creta
Ressurgiremos ali onde pedra estrela e tempo
São o reino do homem
Ressurgiremos para olhar para a terra de frente
Na luz limpa de Creta
Pois convém tornar claro o coração do homem
E erguer a negra exactidão da cruz
Na luz branca de Creta.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Livro Sexto (1962)

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

34. A cantiga é uma arma (José Mário Branco)



A cantiga é uma arma

a cantiga é uma arma
eu não sabia
tudo depende da bala
e da pontaria
tudo depende da raiva
e da alegria
a cantiga é uma arma
de pontaria

há quem  canta por interesse
há quem cante por cantar
há quem faça profissão
de combater a cantar
e há quem cante de pantufas
para não perder o lugar

a cantiga é uma arma
eu não sabia
tudo depende da bala
e da pontaria
tudo depende da raiva
e da alegria
a cantiga é uma arma
de pontaria

O faduncho choradinho
de tabernas e salões
semeia só desalento
misticismo e ilusões
canto mole em letra dura
nunca fez revoluções

a cantiga é uma arma
(contra quem?)
Contra a burguesia
tudo depende da bala
e da pontaria
tudo depende da raiva
e da alegria
a cantiga é uma arma
de pontaria

Se tu cantas a reboque
não vale a pena cantar
se vais à frente demais
bem te podes engasgar
a cantiga só é arma
quando a luta acompanhar

a cantiga é uma arma
contra a burguesia
tudo depende da bala
e da pontaria
tudo depende da raiva
e da alegria
a cantiga é uma arma
de pontaria

Uma arma eficiente
fabricada com cuidado
deve ter um mecanismo
bem perfeito e oleado
e o canto com uma arma
deve ser bem fabricado

a cantiga é uma arma
(Contra quem camaradas?)
Contra a burguesia
tudo depende da bala
e da pontaria
tudo depende da raiva
e da alegria
a cantiga é uma arma
de pontaria

a cantiga é uma arma
contra a burguesia
tudo depende da bala
e da pontaria
tudo depende da raiva
e da alegria
a cantiga é uma arma
contra a burguesia

José Mário Branco, 1973.

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

33. Perfilados de medo (Alexandre O'Neill)

Perfilados de medo


Perfilados de medo, agradecemos
o medo que nos salva da loucura.
Decisão e coragem valem menos
e a vida sem viver é mais segura.

Aventureiros já sem aventura,
perfilados de medo combatemos
irónicos fantasmas à procura
do que não fomos, do que não seremos.

Perfilados de medo, sem mais voz,
o coração nos dentes oprimido,
os loucos, os fantasmas somos nós.

Rebanho pelo medo perseguido,
já vivemos tão juntos e tão sós
que da vida perdemos o sentido...
                 
Alexandre O’Neill, Poemas com Endereço, 1962
               

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

32. O Homem dos Sete Instrumentos (Sérgio Godinho)



O homem dos sete instrumentos 


Chegou o homem dos 7 instrumentos
sua cantiga aos 4 ventos repartiu
às duas por três chegou
e às duas por três partiu
segue para a rosa-dos-ventos
segue para a rosa-dos-ventos
chegou o homem dos 7 instrumentos

Sua cantiga não foi feita de encomenda
não é carne nem é peixe
não compra nem está à venda
não se esquece de quem trata
gente como um cão vadio
fala de gente a lutar
luta de fio a pavio
p´ra poder recuperar
o direito de a respirar
o direito de a respirar
o direito de a respirar

Chegou o homem dos 7 instrumentos
sua cantiga aos 4 ventos repartiu
às duas por três chegou
e às duas por três partiu
segue para a rosa-dos-ventos
segue para a rosa-dos-ventos
chegou o homem dos 7 instrumentos

Ó, Eh! Zés Pereira
Com os tambores a rebentar
andais perdidos nas feiras
nem sabeis p´ra quem tocar
toca tu que tão bem boles
nesse tambor bem martelado
toca toca toca toca
toca toca a reunir
toca toca a reunir
toca toca a reunir

Chegou o homem dos 7 instrumentos
sua cantiga aos 4 ventos repartiu
às duas por três chegou
e às duas por três partiu
segue para a rosa-dos-ventos
segue para a rosa-dos-ventos
chegou o homem dos 7 instrumentos

E se algum dia toda a música acabar
se se acabar de partir
o espelho que faz cantar
preparai-vos meus amigos
que será dia de escuro
de temporais desabridos
dum Inverno bem mais duro
do que este que está a passar
se a música se acabar
se a música se acabar
se a música se acabar

Chegou o homem dos 7 instrumentos
sua cantiga aos 4 ventos repartiu
às duas por três chegou
e às duas por três partiu
segue para a rosa-dos-ventos
segue para a rosa-dos-ventos
chegou o homem dos 7 instrumentos

Sérgio Godinho, 1972.

Canção retirada do álbum "Pré-Histórias".

terça-feira, 1 de setembro de 2015

31. A Portugal (Jorge de Sena)

A Portugal


Esta é a ditosa pátria minha amada. Não.
Nem é ditosa, porque o não merece.
Nem minha amada, porque é só madrasta.
Nem pátria minha, porque eu não mereço
a pouca sorte de ter nascido nela.

Nada me prende ou liga a uma baixeza tanta
quanto esse arroto de passadas glórias.
Amigos meus mais caros tenho nela,
saudosamente nela, mas amigos são
por serem meus amigos, e mais nada.

Torpe dejecto de romano império;
babugem de invasões; salsugem porca
de esgoto atlântico; irrisória face
de lama, de cobiça, e de vileza,
de mesquinhez, de fátua ignorância;
terra de escravos, cu pró ar ouvindo
ranger no nevoeiro a nau do Encoberto;
terra de funcionários e de prostitutas,
devotos todos do milagre, castos
nas horas vagas de doença oculta;
terra de heróis a peso de ouro e sangue,
e santos com balcão de secos e molhados
no fundo da virtude; terra triste
à luz do sol caiada, arrebicada, pulha,
cheia de afáveis para os estrangeiros
que deixam moedas e transportam pulgas,
oh pulgas lusitanas, pela Europa;
terra de monumentos em que o povo
assina a m erda o seu anonimato;
terra - museu em que se vive ainda,
com porcos pela rua, em casas celtiberas;
terra de poetas tão sentimentais
que o cheiro de um sovaco os põe em transe;
terra de pedras esburgadas, secas
como esses sentimentos de oito séculos
de roubos e patrões, barões ou condes;
ó terra de ninguém, ninguém, ninguém:

eu te pertenço. És cabra, és badalhoca,
és mais que cachorra pelo cio,
és peste e fome e guerra e dor de coração.
Eu te pertenço: mas ser's minha, não.
         
Jorge de Sena, 1961

“Tempo de Peregrinatio ad Loca Infecta (1959-1969)” in 40 Anos de Servidão, Lisboa: Edições 70, 1989, pp. 85-86.
Apesar de a obra ter sido publicada postumamente, em 1979, o poema “A Portugal” tem como data da sua elaboração o ano de 1961.
               

segunda-feira, 31 de agosto de 2015

30. Cantar alentejano (José Afonso)



Cantar alentejano


Chamava-se Catarina
O Alentejo a viu nascer
Serranas viram-na em vida
Baleizão a viu morrer

Ceifeiras na manhã fria
Flores na campa lhe vão pôr
Ficou vermelha a campina
Do sangue que então brotou

Acalma o furor campina
Que o teu pranto não findou
Quem viu morrer Catarina
Não perdoa a quem matou

Aquela pomba tão branca
Todos a querem p´ra si
Ó Alentejo queimado
Ninguém se lembra de ti

Aquela andorinha negra
Bate as asas p´ra voar
Ó Alentejo esquecido
Inda um dia hás-de cantar        

José Afonso,1971.

Homenagem a Catarina Eufémia.

domingo, 30 de agosto de 2015

29. O poema pouco original do medo (Alexandre O'Neill)

Poema pouco original do medo


O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis

Vai ter olhos onde ninguém os veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no tecto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos

O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
óptimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projectos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
             (assim assim)
escriturários
              (muitos)
intelectuais
              (o que se sabe)
com certeza a deles
a tua voz talvez
talvez a minha

Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados

Ah o medo vai ter tudo
tudo

(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo             .
que é justamente
o que o medo quer)
          
                   
        O medo vai ter tudo
        quase tudo
        e cada um por seu caminho
        havemos todos de chegar
        quase todos
        a ratos

        Sim
        a ratos
             
Alexandre O’Neill, Abandono Vigiado, 1960

sábado, 29 de agosto de 2015

28. Grândola, Vila Morena (José Afonso)



Grândola, Vila Morena


Grândola, vila morena
Terra da fraternidade
O povo é quem mais ordena
Dentro de ti, ó cidade

Dentro de ti, ó cidade
O povo é quem mais ordena
Terra da fraternidade
Grândola, vila morena

Em cada esquina, um amigo
Em cada rosto, igualdade
Grândola, vila morena
Terra da fraternidade

Terra da fraternidade
Grândola, vila morena
Em cada rosto, igualdade
O povo é quem mais ordena

À sombra duma azinheira
Que já não sabia a idade
Jurei ter por companheira
Grândola, a tua vontade

Grândola a tua vontade
Jurei ter por companheira
À sombra duma azinheira
Que já não sabia a idade

José Afonso, 1971



sexta-feira, 28 de agosto de 2015

27. Notícia para colar na parede (Egito Gonçalves)

Notícia para colar na parede


Por aqui andamos a morder as palavras
dia a dia no tédio dos cafés
por aqui andaremos até quando
a fabricar tempestades particulares
a escrever poemas com as unhas à mostra
e uma faca de gelo nas espáduas
por aqui continuamos ácidos cortantes
a rugir quotidianamente
até ao limite da respiração
enquanto os corações se vão enchendo de areia
lentamente
lentamente.
             
Egito Gonçalves, Notícias do Bloqueio, n.º 3, p. 61
Poemas Políticos (1952-1979)
Lisboa, Moraes Editores, 1980, pág. 53.

quinta-feira, 27 de agosto de 2015

26. Que força é essa? (Sérgio Godinho)




Que força é essa?

Vi-te a trabalhar o dia inteiro
construir as cidades prós outros
carregar pedras, desperdiçar
muita força pra pouco dinheiro
Vi-te a trabalhar o dia inteiro
Muita força pra pouco dinheiro

Que força é essa
que força é essa
que trazes nos braços
que só te serve para obedecer
que só te manda obedecer
Que força é essa, amigo
que força é essa, amigo
que te põe de bem com outros
e de mal contigo
Que força é essa, amigo
Que força é essa, amigo
Que força é essa, amigo

Não me digas que não me compr´endes
quando os dias se tornam azedos
não me digas que nunca sentiste
uma força a crescer-te nos dedos
e uma raiva a nascer-te nos dentes
Não me digas que não me compr´endes

(Que força...)

(Vi-te a trabalhar...)

Que força é essa
que força é essa
que trazes nos braços
que só te serve para obedecer
que só te manda obedecer
Que força é essa, amigo
que força é essa, amigo
que te põe de bem com outros
e de mal contigo
Que força é essa, amigo
Que força é essa, amigo
Que força é essa, amigo
Que força é essa, amigo

Sérgio Godinho, 1971.

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

25. Profecia (Sidónio Muralha)

Profecia


Cada gesto de ódio
cada gesto de prepotência
cada gesto para amordaçar a verdade
cada gesto para amparar a mentira
cada gesto que suprime outro gesto
cada gesto – indigesto

‑ voltará implacável como um «boomerang»
e ninguém escapará a essa lei.
         
             
Sidónio Muralha, “Passagem de Nível” (1942)
in Obras Completas do Poeta. Lisboa, Universitária Editora, 2002

terça-feira, 25 de agosto de 2015

24. Traz outro amigo também (José Afonso)




Amigo maior que o pensamento
Por essa estrada amigo vem
Por essa estrada amigo vem
Não percas tempo que o vento
É meu amigo também
Não percas tempo que o vento
É meu amigo também

Em terras
Em todas as fronteiras
Seja benvindo quem vier por bem
Se alguém houver que não queira
Trá-lo contigo também

Aqueles
Aqueles que ficaram
(Em toda a parte todo o mundo tem)
Em sonhos me visitaram
Traz outro amigo também

José Afonso, 1970.

Versão Mayra Andrade
Versão Resistência
Versão Entre Aspas
Versão Vitorino

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

23. Este é o tempo (Sophia de Mello Breyner Andresen)

Este é o tempo
Da selva mais obscura
Até o ar azul se tornou grades
E a luz do sol se tornou impura
Esta é a noite
Deusa de chacais
Pesada de amargura
Este é o tempo em que os homens renunciam.

Sophia de Mello Breyner Andresen, Mar Novo (1958)

domingo, 23 de agosto de 2015

22. Canto Moço (José Afonso)




Canto Moço

Somos filhos da madrugada
Pelas praias do mar nos vamos
À procura de quem nos traga
Verde oliva de flor no ramo.
Navegamos de vaga em vaga,
Não soubemos de dor nem mágoa.
Pelas praias do mar nos vamos
À procura da manhã clara.

Lá do cimo duma montanha
Acendemos uma fogueira
Para não se apagar a chama
Que dá vida na noite inteira,
Mensageira, pomba chamada
Companheira da madrugada.
Quando a noite vier que venha,
Lá do cimo duma montanha.

Onde o vento cortou amarras,
Largaremos pela noite fora
Onde há sempre uma boa estrela,
Noite e dia ao romper da aurora.
Vira a proa, minha galera,
Que a vitória já não espera.
Fresca brisa, moira encantada
Vira a proa da minha barca.

José Afonso (1970)

Versão Cristina Branco
Versão Ritual Tejo


sábado, 22 de agosto de 2015

21. Um Adeus Português (Alexandre O'Neill)

Um Adeus Português

Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz de ombros puros e a sombra
de uma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta cama comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal

Não tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal
*
Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.
         
Alexandre O’Neill, No Reino da Dinamarca, 1958

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

20. Desfolhada (Poema: José Carlos Ary dos Santos; Música: Nuno Nazareth Fernandes; Voz: Simone de Oliveira)



Poema (Letra): José Carlos Ary dos Santos;
Música: Nuno Nazareth Fernandes;
Voz: Simone de Oliveira.
1969

Desfolhada


Corpo de linho
lábios de mosto
meu corpo lindo
meu fogo posto.

Eira de milho
luar de Agosto
quem faz um filho
fá-lo por gosto.

É milho-rei
milho vermelho
cravo de carne
bago de amor
filho de um rei
que sendo velho
volta a nascer
quando há calor.

Minha palavra dita à luz do sol nascente
meu madrigal de madrugada
amor amor amor amor amor presente
em cada espiga desfolhada.

Minha raiz de pinho verde
meu céu azul tocando a serra
oh minha água e minha sede
oh mar ao sul da minha terra.

É trigo loiro
é além tejo
o meu país
neste momento
o sol o queima
o vento o beija
seara louca em movimento.

Minha palavra dita à luz do sol nascente
meu madrigal de madrugada
amor amor amor amor amor presente
em cada espiga desfolhada.

Olhos de amêndoa
cisterna escura
onde se alpendra
a desventura.

Moira escondida
moira encantada
lenda perdida
lenda encontrada.

Oh minha terra
minha aventura
casca de noz
desamparada.

Oh minha terra
minha lonjura
por mim perdida
por mim achada.

José Carlos Ary dos Santos, 1968.

Santos, Ary, in As Palavras das Cantigas (organização, coordenação e notas de Ruben de Carvalho), Lisboa, Edições Avante, 1995.

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

19. Quem a tem... (Jorge de Sena)

Quem a tem...


Não hei-de morrer sem saber
qual a cor da liberdade.

Eu não posso senão ser
desta terra em que nasci.
Embora ao mundo pertença
e sempre a verdade vença,
qual será ser livre aqui,
não hei-de morrer sem saber.

Trocaram tudo em maldade,
é quase um crime viver.
Mas, embora escondam tudo

me queiram cego e mudo,
não hei-de morrer sem saber
qual a cor da liberdade.

Jorge de Sena (1956)

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

18. Poema da Morte na Estrada (Poema: António Gedeão; Música e Voz: Manuel Freire)



Poema: António Gedeão;
Música e Voz: Manuel Freire.;
(1970)

Poema da Morte na Estrada

A morte, num sopro, colheu-os aos molhos.
Nem tiveram tempo para fechar os olhos.

Eles bem sabiam dos bancos da escola
como os homens dignos sucumbem na guerra.
Lá saber, sabiam.
A mão firme empunhando a espada ou a pistola,
morrendo sem ceder nem um palmo de terra.

Pois é.
Mas veio de lá a bomba, fulgurante como mil sóis,
não lhes deu tempo para serem heróis.

Eles bem sabiam que o último pensamento
devia estar reservado para a pátria amada.
Lá saber, sabiam.
Mas veio de lá a bomba e destruiu tudo num só momento.
Não lhes deu tempo para pensar em nada.

Agora,
na berma da estrada, nuns quinhentos metros,
são quinhentos mortos com os olhos abertos.


António Gedeão, in Linhas de Força (1967)

terça-feira, 18 de agosto de 2015

17. Queixa das almas jovens censuradas

Queixa das almas jovens censuradas
           
Dão-nos um lírio e um canivete
e uma alma para ir à escola
mais um letreiro que promete
raízes, hastes e corola.
         
Dão-nos um mapa imaginário
que tem a forma de uma cidade
mais um relógio e um calendário
onde não vem a nossa idade.
         
Dão-nos a honra de manequim
para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos um prémio de ser assim
sem pecado e sem inocência.
         
Dão-nos um barco e um chapéu
para tirarmos o retrato.
Dão-nos bilhetes para o céu
levado à cena num teatro.
         
Penteiam-nos os crânios ermos
com as cabeleiras das avós
para jamais nos parecermos
connosco quando estamos sós.
         
Dão-nos um bolo que é a história
da nossa história sem enredo
e não nos soa na memória
outra palavra que o medo.
         
Temos fantasmas tão educados
que adormecemos no seu ombro
somos vazios despovoados
de personagens de assombro.
         
Dão-nos a capa do evangelho
e um pacote de tabaco.
Dão-nos um pente e um espelho
pra pentearmos um macaco.
         
Dão-nos um cravo preso à cabeça
e uma cabeça presa à cintura
para que o corpo não pareça
a forma da alma que o procura.
         
Dão-nos um esquife feito de ferro
com embutidos de diamante
para organizar já o enterro
do nosso corpo mais adiante.
         
Dão-nos um nome e um jornal,
um avião e um violino.
Mas não nos dão o animal
que espeta os cornos no destino.
         
Dão-nos marujos de papelão
com carimbo no passaporte.
Por isso a nossa dimensão
não é a vida. Nem é a morte.
         

Natália Correia, Dimensão Encontrada, 1957

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

16. Corpo Renascido


1970

Poema (letra): Manuel Alegre
Voz: Francisco Fanhais
Música Pedro Lobo Antunes.


Corpo renascido
canção
Toco-te e respiras
sangue do meu sangue.

Cantando é como se dissesse: estou aqui.
Cantando eu nego o que me nega
acto de amor
coração perpendicular ao tempo.

Cantando é como se dissesse: estou aqui
na multidão que está dentro de mim.
Recuso a morte cantando
recuso a solidão.

Canção casa do mundo
viagem do homem para o homem
meu pedaço de pão rosa de maio
criança a rir na madrugada.

Cavalos correm nos teus campos
crinas ao vento
são os cavalos indomáveis que te levam
aos quatro cantos do mundo.

Lá onde um homem tiver sede
levarás teus cântaros
lá onde um homem tiver fome
levará teu pão.

Lá onde a liberdade foi assassinada
os teus cavalos livres levarás
e a espada refulgente
levarás ao teu sol canção.

Folha a folha desfolhada
folha a folha renascida
assim tu és canção:
viagem do homem para o homem.

Manuel Alegre, 1969.




MANUEL ALEGRE


domingo, 16 de agosto de 2015

15. YOU ARE WELCOME TO ELSINORE

YOU ARE WELCOME TO ELSINORE


Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte      violar-nos      tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas      portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício
     
Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida      há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição
     
Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsenor
E há palavras e nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmo só amor só solidão desfeita
     
Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar.

sábado, 15 de agosto de 2015

14. Pedra Filosofal



Poema (Letra): António Gedeão (1956)
Música: Manuel Freire (1969)

Canções de Abril. Publicado a 5/08/2008 por ialternativa


Eles não sabem que o sonho
é uma constante da vida
tão concreta e definida
como outra coisa qualquer,
como esta pedra cinzenta
em que me sento e descanso,
como este ribeiro manso
em serenos sobressaltos,
como estes pinheiros altos
que em verde e oiro se agitam,
como estas aves que gritam
em bebedeiras de azul.


Eles não sabem que o sonho
é vinho, é espuma, é fermento,
bichinho álacre e sedento,
de focinho pontiagudo,
que fossa através de tudo
num perpétuo movimento.


Eles não sabem que o sonho
é tela, é cor, é pincel,
base, fuste, capitel,
arco em ogiva, vitral,
pináculo de catedral,
contraponto, sinfonia,
máscara grega, magia,
que é retorta de alquimista,
mapa do mundo distante,
rosa-dos-ventos, Infante,
caravela quinhentista,
que é cabo da Boa Esperança,
ouro, canela, marfim,
florete de espadachim,
bastidor, passo de dança,
Colombina e Arlequim,
passarola voadora,
pára-raios, locomotiva,
barco de proa festiva,
alto-forno, geradora,
cisão do átomo, radar,
ultra-som, televisão,
desembarque em foguetão
na superfície lunar.


Eles não sabem, nem sonham,
que o sonho comanda a vida,
que sempre que um homem sonha
o mundo pula e avança
como bola colorida
entre as mãos de uma criança.

António GedeãoIn Movimento Perpétuo, 1956

sexta-feira, 14 de agosto de 2015

13. Notícias do Bloqueio


Aproveito a tua neutralidade,
o teu rosto oval,
a tua beleza clara,
para enviar notícias do bloqueio
aos que no continente esperam ansiosos.

Tu lhes dirás do coração o que sofremos
os dias que embranquecem os cabelos...
Tu lhes dirás a comoção e as palavras
que prendemos - contra bando - aos teus cabelos.

Tu lhes dirás o nosso ódio construído,
sustentando a defesa à nossa volta
- único acolchoado para a noite
florescida de fome e de tristezas.

Tua neutralidade passará
por sobre a barreira alfandegária
e a tua mala levará fotografias,
um mapa, duas cartas, uma lágrima...

Dirás como trabalhamos em silêncio,
como comemos silêncio, bebemos
silêncio, nadamos e morremos
feridos de silêncio duro e violento.

Vai pois e noticia com um archote
aos que encontrares de fora das muralhas
o mundo em que vemos, poesia
massacrada e medos à ilharga.

Vai pois e conta nos jornais diários
ou escreve com ácido nas paredes
o que viste, o que sabes, o que eu disse
entre dois bombardeamentos já esperados.

Mas diz-lhes que se mantém indevassável
o segredo das torres que nos erguem,
e suspensa delas uma flor em lume
grita o seu nome incandescente e puro.

Diz-lhes que se resiste na cidade
desfigurada por feridas de granadas
e enquanto a água e os víveres escasseiam
aumenta a raiva e a esperança reproduz-se.  

 Egito Gonçalves, Notícias do Bloqueio, 1952
       

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

11. Ar livre



Ar livre, que não respiro!
Ou são pela asfixia?
Miséria de cobardia
Que não arromba a janela
Da sala onde a fantasia
Estiola e fica amarela!

Ar livre, digo-vos eu!
Ou estamos nalgum museu
De manequins de cartão?
Abaixo! E ninguém se importe!
Antes o caos que a morte...
De par em par, pois então?!

Ar livre! Correntes de ar
Por toda a casa empestada!
(Vendavais na terra inteira,
A própria dor arejada,
- E nós nesta borralheira
De estufa calafetada!)

Ar livre! Que ninguém canta
Com a corda na garganta,
Tolhido da inspiração!
Ar livre, como se tem
Fora do ventre da mãe
Desligado do cordão!

Ar livre, sem restrições!
Ou há pulmões,
Ou não há!
Fechem as outras riquezas,
Mas tenham fartas as mesas
Do ar que a vida nos dá!
            
Miguel Torga, Cântico do Homem, 1950